Meninas autistas

Meninas Autistas

Eliane Aparecida da Silva Pedroso
Conselho de Ética ONDA-Autismo


Uma menina crescida, como eu, nos anos setenta era considerada bem-educada, se fosse quietinha, não fizesse bagunça, obedecesse aos pais, professores parentes; não se envolvesse com os grupos mais barulhentos, ainda que parecesse, às vezes, meio aérea; que ficasse limpinha, comendo pouco e devagar.

Esse estereótipo que muitas vezes é exigido das meninas e mulheres ainda nestes tempos do século XXI funciona como um grande inimigo das autistas do gênero feminino.

Pesquisas mais antigas indicaram sempre um número muito maior de meninos autistas do que de meninas. Com o tempo, os estudiosos perceberam que as mulheres ocultam melhor sua condição.

É que àquele perfil já apresentado, deve-se somar a recomendação de falar pouco, ser conveniente. Encaixar-se nas expectativas do entorno. Crescemos treinadas para não decepcionar com nossas atitudes, palavras ou gestos aos que nos rodeiam.

A que, crescida, será a “bela, recatada e do lar” parece ser o figurino mais próprio para a mulher.

Acontece que o Transtorno do Espectro Autista tem por sintomas: a peculiaridade na comunicação, a dificuldade de socialização, as restrições sensoriais e objetivos ou comportamentos repetitivos.

Alguém que se inclua no TEA tende a ser reservada, tanto porque não se comunica bem, como porque tem severos limites para socialização. Além disso, quando fala e quando ouve, transforma as palavras em imagens concretas e não consegue, por isso, compreender discursos indiretos, metáforas, ironias ou piadas. Recolher-se caladinha é uma saída!

Os hiperfocos, obsessão por determinado assunto, que podem ser mais ou menos transitórios, cooperam para esse isolamento. Todo tempo disponível, o autista aplica em seus interesses. E isso não se dá numa hierarquia, em que outras atividades, atenções ou interesses vêm mais abaixo. É o samba de uma nota só. Aqueles poucos amigos, irmãos ou parentes que conseguem vencer a barreira da socialização, não raro se aborrecem com a repetição de um só assunto.

As dificuldades sensoriais não permitem que a criança goste de se sujar em brincadeiras, como é comum aos neurotípicos. Esse asseio, que se revela na verdade uma barreira, soa, também, como característica de uma boa menina. Não seria essa a conclusão que alguém tiraria, se um menino não gostasse de sujar-se jogando bola, ou pisando nas poças d’água depois da chuva.

Essas restrições atingem, também, o paladar, impondo ao autista alta seletividade alimentar. Alguns não conseguem mastigar a comida e muitos fixam-se em quantidade pequena e específica de alimentos. Uma menininha que come pouco é também adequada! Um menino que coma pouco chama a atenção, porque não ficará “forte” como se espera dos homens. Deve haver algo errado com ele. Nos primeiros anos de vida, e isso deve ter durado até os cinco ou seis, meu pai tinha o cuidado de passar a comida sólida pelo liquidificador e me alimentar com mamadeira. Embora algumas pessoas pudessem achar isso estranho, uma menina que até para a escola já ia, mamando, não causava a estranheza que poderia suscitar se eu fosse um menino.

Nessa mesma época, até por volta dos cinco anos, meus pais costumavam sair para atividades que não demoravam muito e me deixar em casa sozinha. Claro que é preciso lembrar que isso ocorreu nos anos setenta, quando as condições de segurança eram melhores do que na atualidade, mesmo em São Paulo. E meu pai me recomendava ficar sentada no sofá, lendo livrinhos. Posso contar nos dedos de uma mão, sem completá-los, as vezes em que minha curiosidade e a impulsividade infantil me levaram a sair do lugar e xeretar num armário ou num outro cômodo. A linguagem tem, para nós, um peso concreto. “Não saia” é “não saia”. “Fique lendo o livrinho” não dá espaço para “dar uma saidinha e roubar um doce na cozinha”.

Por essas atitudes que aparentam obediência e maturidade, claro que eu era elogiada. Mas a maior força que me levava a obedecer, literalmente, está mais justificada na minha condição neuro atípica, do que em meu perfil pessoal ou na boa educação que meus pais possam me ter dado.

A linguagem concreta traz também complicações para a criança. Na escola, embora a grande velocidade de conexão de seus neurônios, cada palavra vira uma imagem e a cabecinha do autista vai encadeando-as. Grande confusão ocorre quando o interlocutor utiliza figuras de linguagem, faz ironias ou conta piadas. Isso embola ainda mais o quebra-cabeça das palavras-imagem que vão crescendo, se apertando e se espremendo. Isso faz parecer que a criança autista não está acompanhando o que está sendo dito ou o que foi solicitado.

Sem contar com a possibilidade de um melt down, a perda do controle pessoal, por exaustão.

Cheguei à escola aos quatro anos de idade, quando já estava completamente alfabetizada. Em razão disso, fui promovida, no mesmo dia, para o pré-primário e, um pouco mais tarde, para o primeiro ano do primeiro grau. Passei a conviver com crianças de seis ou sete anos de idade. Que inteligente! Mas eu ainda usava fraldas! Claro que essa situação cooperou para meu maior isolamento social. O caráter excepcional da inteligência em algumas pessoas do TEA é quase sempre visto como uma dádiva, quando pode trazer consigo, como se vê, dificuldades.

Essa antecipação na escola acompanhou-me pela vida, levando-me a completar a faculdade de Direito cedo e a permitir que eu fosse aprovada no concurso para juíza aos 24 anos.

Até com pessoas mais próximas, mantive a vida toda um incômodo com a comunicação. Uma de minhas colegas de concurso costumava dizer que, ao me telefonar, sentia-se ligando a cobrar para alguém que mora no exterior, tamanha minha pressa em encerrar logo o papo. Isso nunca ocorreu pra mim. Gosto dela e não teria pressa em ouvi-la, mas a comunicação sempre foi um complicador, e eu nem sabia porquê.

As peculiaridades de socialização também influenciaram em importantes aspectos de minha evolução pessoal e profissional. Ainda não sei com clareza o que esperam nesse tema os que me rodeiam. A convivência no trabalho é para o trabalho. Não faz muito sentido invadir a vida particular dos colegas, com visitas, telefonemas ou conversas sobre assuntos mais pessoais e privados. Nunca sei o que responder, quando alguém, naquele espaço, me conta algo da família, ou um segredo pessoal, ou uma fofoca. Também não entendo convites para batizado, aniversário, casamento, jantares com as pessoas que estão vinculadas a mim porque são minhas colegas. Os abraços e beijos tampouco me agradam. Isso é antipático, certamente. Para um neurotípico, mas não para uma autista, que sabe que invadir a individualidade não é conveniente, nem correto, nem faz bem.

Como essa postura de “ideal de menina” vem chancelada pela sociedade, fica muito mais remoto que alguém compreenda que algo está desviado do que é neurotípico.

O diagnóstico de mulheres para o autismo é difícil e costuma ser tardio. O meu me chegou aos cinquenta anos. Trouxe-me, claro, grande alívio, porque me ajudou a compreender parte de minhas dificuldades ou de meu ‘funcionamento’.

Necessário tirar da frente o véu que envolve a figura ideal das pequenas (e das grandes) mulheres, para garantir-lhes acesso ao tempestivo diagnóstico de TEA, o que patrocinará um crescimento mais saudável e integral.

Para as crianças, a Constituição brasileira diz que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Tudo começa na informação. Conhecer os conceitos, desvendar os preconceitos sobre o TEA e, ainda mais além, sobre autismo em meninas ajudará a ajudar. Quem sabe não discrimina, nem menoscaba, nem desentende. Quem sabe coopera, ampara e acolhe.